quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Relojoeiro

Redoma de mundo. Nem tão pouco, nem tão mundo. Ao alcance de dois cliques e, logo assim, seus ponteiros mínimos e singulares corriam numa dança com apenas um expectador. E ele presumia pouco de si... Se os ponteiros pudessem presumir em uníssono com o relojoeiro, então a presunção dos três, hora, minuto e relojoeiro, seria a mesma.

Tal presunção era mistério... Focava-se no que via. Sua profissão se pautava no esmero e na atenção extrema, afinal, lidava com os minúsculos componentes de um relógio de pulso. A velha mão calejada, de tantas quantas idas e vindas, peças e microparafusos, deitava um pequeno lenço para forrar o relógio.

Regozijava-se à sua sinfonia particular... Tin, din, dom, taque, tin, din, dom, taque. Para ele, Beethovens ou Chopins particulares. Mas era só mais um dia na vida do relojoeiro... E se perguntava se, para aquele homem que vive do tempo, o tempo por si só se permitiria ser mensurado por ele, seu antigo amigo, ou se seria impetuoso e friamente cortante e indiferente como o é com todas as coisas que se põem vivas à luz do sol ou nas trevas de sua escuridão.

O pai, cujo relógio já havia parado de correr há muito, dizia ao filho que os homens não foram feitos para compreender o tempo, pois a natureza do tempo é como a turva natureza dos homens, fruto de sua própria inexorabilidade. Os homens foram feitos para dançarem ao som dos tiques e taques, em sua valsa descompassada de horas e minutos, e que por eras seria assim, até que o homem venceria o tempo e seria eterno como o é: não mais homem, mas fagulha de tudo.

Aquele que o é, por essência, essência de todas as coisas.

Perguntava-se no que aquilo afetaria sua vida, e simplesmente não entendia... O conflito era iminente. Os olhos agora não desgrudavam da marcha dos ponteiros, e percebia neles a batida de sua música; e percebia também que nessa batida havia um rito profundo de lamento e dor... Como todas as coisas que jamais o serão.

Perdeu-se em pensamentos... O que seria melhor, viver no efêmero ou não-existir como o eterno? Sua dúvida era insana e inrazoável de se responder. Permaneceu na sua ignorância intuitiva de silêncio.

Na sua infinda solidão, questionava se medir o tempo seria a coisa mais inteligente a se fazer... Os olhos se marejavam de lágrimas, e logo quedaram sobre as mãos... Tão velhas e sofridas, como sua alma torpe e descompassada, cheia de vazios. As horas pareciam-lhe sem significado... Pois para ele, mal apercebido, o significado de suas horas acabava sendo as próprias horas...

Era como se fosse fim do fim ou fim do começo, e nessa relação chacoalhante, não entendia porque mais se reter ao tempo, pois se descobriu frágil demais... Pois o tempo, agora mais do que nunca, se revelava o critério destruidor de todas as suas estações.

Procurava uma solução, sua saída particular, mas aquela porta sinuosa não havia... E agora, no auge da dor, não se compreendia epifânico, mas desesperado, como se todos os minutos já lhe passados se personificassem nos tiques e taques das dezenas de relógios que o circundavam em seu escritório... Na sua perdição particular, então, parecia asfixiado, pois pela primeira vez entendeu que nenhum relógio pode ser de fato regulado, mas aceito como o é: soberano incontestável de si próprio.

As lágrimas arrazoavam sua triste sina de impotência e falta de propósito... Era o condenado. O relojoeiro. Para sempre reduto de seu fim. Para sempre arauto de um iminente começo. E, até o último tique-taque, assim o relojoeiro quedaria...

...como um medíocre sonhador, que nunca soubera sequer sonhar.