sábado, 18 de janeiro de 2014

Memórias


Meneou as mãos pelo ar, exaltando o cheiro de naftalina na velha sala. Aos moldes do passado, o Escultor quisera repetir os maus feitos de alguns ocasos que já não lhe voltavam mais.
E lá ia o imbecil. Largou a picareta sob a tábua mofada da mesa, cuja madeira jazia tão podre quanto a sua alma descompassada e cheia de maldade. Relampejos inconstantes e a ira pendular; o Pigmaleão fitava a perdição à frente. Um baque. Dois. Começava a dar-lhe vida, com vida e na mente, vida às suas formas e disposições.
Rodopiava ao seu lado uma forma magra de ave, despontando no ar como um buraco negro. Seus olhos eram opalinos de tal forma que não podiam ser encarados. Terminou o rasante com o aspecto de um corvo de ébano.
Corvo: Quiseras tu uma vida mais viril? Vives de mármores e cores tortas! De uma desforra sempre tão vil és só vivalma em madrugadas mortas...
Escultor: Cala-te, teu mestre não te pergunta nada... Se és tão zombeteiro, poderias ao menos respeitar aquele que te provê subsistência!?
Corvo: Há quanto não sentes os afagos da carne, Escultor? Larga esta tua sina!
Escultor: Nada! As formas vivas não estão à minha altura...
Corvo: À tua? Tem certeza? Esquizofrênico!
Escultor: Praguejador! Gralha do diabo!
Virou-se, a pancada brusca sobre a mesa, a praga fria zumbindo-lhe os ouvidos...  Cortou a cabeça do dedo, e o sangue vazou como água em fissão de pedra... Uma única coisa viva no reino de escuridão, o quão doloroso aquilo lhe surgia? O rubro do sangue resplandecente era portador do tom mais que fascinante aos olhos insones do Escultor.
Escultor: Vês o que fizeste? A tua simples presença põe à terra todo o meu trabalho! Anátema!

Corvo: Não chames essas tuas frustrações de ofícios!
Escultor: Darei vida a um gavião de pura chama, para que te incandesça vivo! Ignaro!
Ria ruidoso o Escultor, enquanto a ave se recolhia nas sombras da lúgubre oficina. Fazia questão que suas gargalhadas ecoassem, como o anunciar de uma supremacia falsária, embuste frágil como orvalho. Era seu mundo de trunfos, seu burgo de sombras antigas e envilecido por seus segredos insidiosos.
Ergueu-se ao seu lado, feita de costela alguma, mulher alva como a lua, e pálida como a bruma. Era de feições e esplendor inenarráveis, os olhos querendo pintar alguma malícia que não existia... E não existia nada porque era este um ente em mármore.
A Galateia: Eis que chega meu senhor, ansioso por fazer-me sua! Escolhestes como descarregar o teu ardor? Põe as mãos nesta carne nua!
O Escultor encarava a obra, e gargalhava satisfeito. Trotava daquela garganta riso funesto, corda despontada como em desafino, e o som punha abaixo até mesmo a harmonia do silêncio. Incomodado com o próprio escárnio cacofônico, estalou os dedos como quem está a olvidar um detalhe importante.
Escultor: Eu quero música!
Um cravo despontava em tonalidade menor, povoando com notas o sinistro reino escuro. O Escultor cospe no rosto da mulher, e aperta-lhe o pescoço de mármore, a ira partindo da ponta dos dedos num crescendo de tesão. O mero toque, com casualidade, causava-lhe eletricidade de um orgasmo. O calor despontava-lhe das pontas dos dedos, irradiando sua alma e fazendo-o enxergar estrelas que não existiam. Era prazer puro.As veias dilatavam em paixão, os olhos quedavam cerrados sobre a face sem vida... Sem vida... Um alguém que não podia, simplesmente, morrer... Quem era?
Escultor: Cala-te, rameira! Não abra essa tua boca imunda sem que eu te mande, mulher!
A criatura de mármore deslizou para trás. Se pudesse expressar-se, será que verteria algumas lágrimas em mármore?
Corvo: Doente! Como podes construir um mundo se não consegues reparar nem teu doído coração?

Escultor: Pergunto-te eu, corvo! Para que choras meu coração? Não te basta o teu grilhão?
Corvo: Que grilhão, doidivano?
Escultor: És uma ave estúpida e amorfa, escura como a noite, e povoas o coração dos homens de espanto! És maldita, agoureira e malfazeja! Quem errou tanto a mão na hora de te esculpir? – dava a cartada.    
Corvo: Sou consciência, Escultor! Tua consciência! Caio-te negro como teu coração pérfido, cambaleante nas agonias de um desprezo a não se esquecer! Olha bem tu, homem, para o rosto cuspido e esculpido desta mulher! Fita-o! Sente-o! Trague-o! Ela é tu, tu és ela! Tua criatura, assim como o amor é criatura tua também! Preservas este semblante e não te apequenas... Respeita!
Escultor: Respeitar quem não me respeita!? Cala apenas!
O corvo voou da pedra luminescente onde jazia, as asas abrindo-se e perdendo forma no âmbito escuro. Miscigenou-se às sombras. Se luz entrasse ali, nos perdidos recônditos de um homem fragmentado, o que encontraria? Quais estilhaços compunham o escultor?
Corvo: O mal não existe, homem! Olhas o rosto da mulher que tu amaste! Percebes como tu és através dela!
Respondeu com um gesto de ódio. Urro. O corvo o desconheceu, as garras da ave pousando sob o topo de uma tela.
[...A ser continuado...]

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O Observador e a Tela



Algumas tantas malfadadas linhas haviam sido trocadas várias vezes entre os dois; lidas e ditas, ouvidas e sentidas. O tempo era um agente estranho naqueles contos constantemente inacabados.

E, se posto o sentido daquele contato, ele mesmo se perdia, fugaz como o orvalho, num átimo ortodoxo de tempo. E assim os olhos da flor que era botão o fitavam.

Ela tinha a expressão encantadora das mais avassaladoras das dicotomias. O seu emblema era significante e  significador... Era pérfido. E perfidamente era-lhe prazeroso ser dicotômica, por natureza, e instaurar a confusão em um coração incauto.

A expressão, à sua maneira, o confirmava: tinha o olhar mais dúbio que ele, homem, já havia concebido em suas mais de cinco existências lembradas.

- "O que se passa em sua cabeça?", resmungava enquanto não desgrudava os olhos dela.

Quedou atônito a contemplá-la. Ao seu redor tudo era tela, e nada mais existia, pois permanecia desfocado, e o acinzentar englobava o que não se sabia vivo ou morto. Era só a imagem. A imagem da rosa vermelha e ele.

- "A imagem diz muito sobre mim... Vou observá-la melhor".

E assim o fez. Deitou-lhe os olhos enquanto a mão dela sustentava seu queixo em vê, exato e alvo como o resto do seu rosto. Queria tocá-lo. Nem todas as palavras aqui largadas honram-lhe a impressão que provocava. Era fascínio puro, da qualidade mais excitante e inevitável.

O observador tremeu, taquicárdico, as mãos valsando ao ar em busca de firmeza e exatidão. Sentia-se incomodado mais ainda com o já observado semblante, semblante de quem acorrentava-lhe a atenção. Os dois olhos da dama permaneciam estáticos, mas se movimentavam sim, apesar de toda a estaticidade da figura-quadro. Oscilavam entre órbitas e pupilas de anjo e demônio. Santa, pecadora, imaculada, desprezível. Era encantadora... A -sua- criatura encantadora.

- "Um convite à minha inteligência" - concluía.

Percebia, a cada indagação, um sorriso de provocação dos lábios mais que provocantes da mulher. Era-lhe sua sina, tão doce ou amarga quanto mais dicotomias pudesse ela lhe propor. Sua vida era pêndulo, simplesmente, pois ela assim o queria.

- "E o que queres tu de mim?"

Nada. Quer tudo, ao seu modo, ao seu passo, à sua batida. Na sua sonata descompassada, nem mesmo sabe o que quer, simplesmente se deixa lançar no fluxo do tempo. Perdida. O observador remeteu os pensamentos à sabedoria de Grécia, e pensou que ela era capaz de desprender-se da teia de Horas, Musas e Moiras. Era mais que todas as suas abstrações. Ela era abstração pura. Ela era mais poderosa e divina do que se imaginava, e se se visse de outra forma, estaria cometendo uma injustiça terrível.

- "Você é uma abstração nada produtiva" - desafiava, o homem, a rosa.

Veio-lhe o primeiro impulso. A inércia da figura o incomodava brutalmente: se ele agia ao seu favor, parecia-lhe zombeteira, a rir e escarnecer de suas intenções, fazendo-lhe de pateta. Se ele erguia a voz a ela, já valsava macia e amável, numa outra disposição na tela, como rosa que era. E, logo, seu vermelho-fogo caía-lhe como um vermelho de mais pura afeição e candura.

Mas ele era sério demais para tantas firulas. Ergueu as mãos, pensativo, o desejo de tocar-lhe o pescoço candente e macio, tão próximo que podia até imaginar qual seria o aroma da tez daquela criatura. Queria cravar-lhe os caninos, e rasgar e sentir a carne com toda a bestialidade que corrói as veias de um homem apaixonado.

E assim o fez, aproximando os dedos como agulhas daquela criatura infeliz. Mas ele era mais forte - nem o homem nem a sua Galatéia de tintas, mas o sentimento. O sentimento. As mãos nunca alcançaram o alvo. Parou, estático, num gesto não ensaiado.

- "Fascinante", concluiu, o coração rasgando-lhe o peito em mil batidas.

Os dedos cerrados relaxavam como se a força tivesse se dissolvido, e tocou-lhe as maçãs tenras do rosto, em um gesto fraternal e amoroso, e também sexual. Inspirava-lhe todas as paixões, serenidades, sabedorias e encantos que poderia pensar existirem. Muito mal fez o homem àquela rosa, e mesmo assim, ela e ele, ali, persistiam.

O toque, o elo, o contato. A paixão. Não há beleza que não doa...
Mas há dor que o valha.

Tocou sua rosa amada, a rosa avermelhada, rubra como a Dama de Vermelho oposta à Virgem. Era sua paixão. Tocou-a de novo e de novo, e o tempo passou para os dois, imagem e homem.

Um baque. O morto.

Passou e assim viu-se morto. Morto sim, mas eternizado estaria, ele, seu carinho e amor; no toque que se dava e se perpetuava naquele átimo repleto de tempo.

Seus versos ecoam até hoje acima de terras e mares, e ele vive neles e com eles, na paixão infinda pela rosa avermelhada... Porque sua história merecerá sempre ser recontada, porquanto seu amor por ela perdurar.