quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Diálogo sob a luz das estrelas



Tempo não mais havia, porquanto os sinos daquela noite haviam dado seu último badalo. Na mente de um jovem inventivo, cada ressoar, fragmento de sonoridade, era um pedaço de uma sonata há muito esquecida. Talvez, se juntasse todos os pedaços, veria seu Deus?

Em suas memórias conturbadas, era como se homem não o fosse, mas um colibri que veio a voar sobre a vida e cantar-lhe as glórias e tragédias vividas. Era como se sentia o Menestrel, artista de mil e uma ações, percepções e sentimentos.

Largou a lira ao lado, o cheiro das camélias avançando às narinas. Elas dançavam ao redor dos dois, ao menor sinal das primeiras lufadas gélidas de ar da noite. Seu fragor intenso o deixou tonto e estremecido. No centro, duas figuras curvavam-se sobre uma mesa de carvalho. Os notívagos jogavam xadrez.

Hierofante: Sua vez.

O Menestrel encarou o adversário. Os dedos dele tocados pela idade, a fronte sisuda e compenetrada, impassiva como uma muralha. Assim era seu rival; surgia-lhe sábio como o cume das mais altas montanhas. Sua voz era como catarata de cristal, os dois olhos prontos, parecendo entrave para todas as sabedorias do mundo.

O Menestrel: Quisera eu poder premeditar todas as tuas jogadas, Hierofante... Assim como as jogadas de todas as outras pessoas deste mundo.

Hierofante: Se assim o fosse, o sentido posto desta partida de xadrez não existiria.

O Menestrel: Como todas as outras coisas... - tossiu, um riso doce brotando-lhe no canto da boca.

Hierofante: Que coisas? A que tu se referes?

O Menestrel: Ao mundo que nos cerca... Permites que demonstre?

Hierofante: Claro.

O menestrel tirou a lira do repouso. Sua mão tocou a haste fria do instrumento, a excitação subindo-lhe como eletricidade. Sentia a virulência da música tomar-lhe como se a lira fosse sua própria prostituta. E as notas, para ele, eram como pedaços vivos de algo longevo, uma candura que não lhe caia em palavras. Com o pouso do mais arrebatado silêncio, irrompeu, o menestrel, a noite, com uma história antiga de mais de mil gerações.

Suas notas e lágrimas coravam o ar e o espaço se contorcia ao redor dos dois. O sábio e a criança. O anjo e o menino. O guardião e seu pupilo. Mas ali, só havia um, como um Deus dividido em duas consciências. O Hierofante era a intuição, e o Menestrel, seus sentimentos.

Começou a balada de um trôpego homem, impetuoso e raivoso que, como o Zeus das eras passadas, era poderoso em defender o que cria como o "certo". As notas eram agulhas cravando a carne do Menestrel, e as lembranças o causavam dor... O Hierofante permanecia atônito, apenas a observar a cena vulgarmente narrada.

Tocou sua lira, a prostituta querida, e viu mais mil sóis de amor e derrota. Suas histórias eram rodopios amargurados, em dias passados e um fator inconteste. O Menestrel era revoltado com a passagem das coisas, com sua natureza intempestiva, com os dias idos que não voltariam mais. Detestava as oportunidades perdidas e jogadas ao relento. Julgava a si mesmo incapaz de fincar estacas e honrar todas as juras que fizera... Queria um porquê e não o conseguia. O que mais lhe parecia confortável é imaginar que aquilo era sua natureza ou sina.

Hierofante: Pare. 

As lágrimas cessaram, e os olhos até então cerrados se abriram. Eram lindos como a mais antiga noite, de tempos imovediços e que nunca mais se repetiriam. O Menestrel estava banhado em Lua, as emoções eram tão belas e provocantes que ele parecia a criatura mais perfeita do cosmos. Aos olhos do velho Hierofante, era uma criança perdida em seus próprios revezes.

O Menestrel: Olha para os meus olhos... Qual o propósito dos meus sentimentos? Eu não estou certo? Não é injusta essa vida? Quisera eu poder refazê-la e aproveitar o máximo dos momentos idos... Pois uma vez disseram a este cantor de coisas vãs que o amor não finca estacas: ele vem, chega e vai embora...

Hierofante: E o que inferes disso, Menestrel?

O Menestrel: Que eu estou condenado à minha própria natureza sensível! Que posso eu fazer se amo todas as coisas?

Hierofante: O que chamas tu de amor, menino?

O Menestrel: O que sinto por todos aqueles que me cativam. Mas sinto que esse amor passa, ao simples relance de sóis que ainda virão e de sóis que há muito se puseram... É como o orvalho... Tão fugidio!

Hierofante: Não compreendes a natureza dos teus próprios sentimentos?

O Menestrel: Se os compreendesse, por absoluto, sofreria?

Hierofante: Talvez... Se estes te fossem indignos?

O Menestrel: Injúria... O amor é puro, certamente. Se nasci desta forma devo amar a todos aqueles que puder amar... Mesmo que eu esteja sempre pronto para ir embora no ocaso seguinte.

Hierofante: No fundo tu não compreendes teu próprio ser, e julgas que és imprevisível apenas para te autopreservar.

O Menestrel: Preservar-me de que, Hierofante? Que dizes tu disso, tu que achas que sabe de todas as coisas terrenas tanto quanto das divinas?

Hierofante: Pouco me aprazem as tuas zombarias e pequenices... Há muito estão superadas. Eu sou tu, de certa forma... Será que tu me conheces?

Calou-se o menestrel... Seus olhos tristes e alvos como a Lua necessitavam de afago. Até a mais sisuda das mulheres cairia de encantos se visse a alma daquele homem por inteiro. Na arte das palavras, era quase como se tivesse nascido com todas as habilidades possíveis, tecendo alvoradas com a linguagem. Era capaz de evocar todo o encanto do mundo, e seus olhos, porquanto o fossem como o eram, quedavam casando toda a singularidade da natureza. Era realmente um filho de Afrodite, representando o alvor puro da criação.

Fez seu movimento, torre contra rainha, avançando em direção ao jogo do inimigo.

Hierofante: Contemplas estas palavras... Dizem os homens que, quando o discípulo está pronto, o mestre aparece. Não sei se estás tu pronto, mas se me inquire o conselho, haverá de certo de tê-lo.

O velho hierofante ergueu-se da mesa, altivo, uma enorme cruz na mão direita e uma portentosa espada deitada na esquerda. Ali travou-se a segunda batalha entre os dois, através do verbo.

Hierofante: No casamento de todas as coisas divinas é que surgem as mundanas. Na tua pequeneza, se escondem todos os segredos deste universo. Pois tu és magnífico em teu ser, mas falta-te tato para saber que teus sentimentos, embora poderosos, são apenas uma faceta tua.

O Menestrel: E qual a outra?

Hierofante: Existe Afrodite sem Hermes?

O Menestrel: O que queres dizer?

Hierofante: Que tu não sabes lidar com os próprios sentimentos, pois se esqueces que os sentimentos sem razão não têm propósito.

O Menestrel: Como assim? Queres me dizer que a razão é mais importante que os sentimentos?

Hierofante: Quero dizer-te que nenhum é mais importante que o outro, mas que os dois se completam. Vejas só tu, altivo por natureza, o homem que conquistaria qualquer das mulheres deste mundo. Qual teu propósito com o amor?

O Menestrel: Costumava pensar que sentir-me bem... 

Hierofante: Costumava?

Menestrel: Sim... Não me sinto.

Hierofante: Por quê?

O Menestrel: Porque sofro, e sofro bastante. Caio em mil e uma epifanias, que mais me são como torturas, e chego a conclusões terríveis sobre mim e o mundo. Isto posto, eu as naturalizo, mas não adianta... Um dia o sofrimento há de voltar.

Hierofante: Então não são epifanias conclusivas, mas percepções parciais... Ninguém vê todos os lados do prisma de uma só vez. Epifanias absolutas não criam sofrimento. Tu temes o sofrimento, Menestrel?

O Menestrel: Temo. E sofro porque as coisas boas passam e têm sua hora.

Hierofante: E as que virão? E as que já te surgem? Serás que consegues enxergá-las?

O Menestrel: Minha natureza as dificulta... Por ora me sinto afetuoso, lascivo e apaixonado, por outras me afasto e percebo como pouco sei de mim mesmo... Qual a resposta para meu dilema?

Hierofante: Não sei... Só tu podes responder essa pergunta.

O Menestrel: Qual é então o propósito dessa conversa? Se tu não sabes me dar respostas, apenas fazer-me perguntas...

Hierofante: Estás descobrindo o propósito neste exato instante.

O Menestrel: Estou?

Hierofante: Estás.

O menestrel arqueou-se para trás. Não havia percebido que seu jogo de xadrez estava acabado com o erguer-se do Hierofante. Seu Rei, como seu mundo, estava perdido num curioso xeque-mate.

Caminhou assim para trás, a passos largos, afastando-se da mesa e aproximando-se do círculo de camélias que os envolvia. Pensou em tocar a lira, mas desistiu.

O Menestrel: Aconselha-me... Acho que preciso dos teus conselhos.

Hierofante: De que adiantam conselhos se tu não pretendes tornar-se outro? É como gotas de água contra um incêndio, quando tu próprio provocas o incêndio.

O Menestrel: Não posso!

Hierofante: Porque és fraco. Em tuas convicções e presunções reside a tua maior fraqueza. És tão pouco ciente das próprias forças que se prendes às fatalidades e se deixas arrastar por um destino incontrolável. És como um pequeno peixe contra uma correnteza faminta... Teus maiores grilhões são as ideias que tem de si.

O Menestrel: Queres que eu me apegue ao passado? Assim sofreria ainda mais... Com bilhões de possibilidades e primaveras por conhecer, porque haveria eu de...

Hierofante: Mais uma vez se preservas deturpando o que eu digo. Sabes qual é o maior indicativo de que há algo errado?

O Menestrel: Qual?

Hierofante: O desejo por mudança. E se não mudas, é pois naturalizou hábitos e perspectivas as quais te surgem como grilhões. Jamais mudarás tu, Menestrel, porquanto tu não te empenhares.

O Hierofante andou, seus passos ruidosos faziam o céu tremular, e a cada movimento ele parecia maior e mais altivo, como se fosse uma divindade se materializando aos poucos, trazendo ao ambiente os mistérios e as respostas

Hierofante: O amanhã é sempre um dia promissor, não? Por que não tentas tocar uma música diferente hoje, e não esperas por amanhã? 

O Menestrel: Será? Qual o tema?

Hierofante: Um tema inteiramente novo... Um novo olhar sobre ti, tuas paixões e todas as outras coisas. Tenta.

Os dedos corriam as cordas da lira, e começava a nova e última música do Menestrel. Esta parecia diferente, posto que as notas pareciam estar soando como se tocadas em outra escala. Nela, viu o quão frágil era, e o quão enganosos e enganados poderiam estar seus olhos sobre todas as coisas, sobre si e sobre aquilo que reconhecia como "amor".

Viu-se diferente, como um observador estático de si mesmo. Por mais que se achasse incapaz de fincar bases pela vida, tudo não lhe passava de questão de perspectiva... E se ousasse? No fundo queria se entregar aos sentimentos mais profundos e famintos, mas tinha medo deles... Já haviam lhe custado muito e causado muita dor. Seu medo, pintado na forma de receios, era a pior forma de aprender com eles.

Sua principal descoberta foi perceber que, além dos próprios sentimentos, não havia nenhuma "natureza" ou "corrente" que durasse a ele pela vinda inteira... Era tão mutável e nem imaginava! Seu erro maior não era desprezar as coisas passadas... Era jamais ter conseguido viver as presentes sem esquecer o passado. Um paradoxo ambulante.

Só havia um problema. A sua pergunta inicial persistia... Qual o propósito dos seus sentimentos? Um enigma.