terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O Observador e a Tela



Algumas tantas malfadadas linhas haviam sido trocadas várias vezes entre os dois; lidas e ditas, ouvidas e sentidas. O tempo era um agente estranho naqueles contos constantemente inacabados.

E, se posto o sentido daquele contato, ele mesmo se perdia, fugaz como o orvalho, num átimo ortodoxo de tempo. E assim os olhos da flor que era botão o fitavam.

Ela tinha a expressão encantadora das mais avassaladoras das dicotomias. O seu emblema era significante e  significador... Era pérfido. E perfidamente era-lhe prazeroso ser dicotômica, por natureza, e instaurar a confusão em um coração incauto.

A expressão, à sua maneira, o confirmava: tinha o olhar mais dúbio que ele, homem, já havia concebido em suas mais de cinco existências lembradas.

- "O que se passa em sua cabeça?", resmungava enquanto não desgrudava os olhos dela.

Quedou atônito a contemplá-la. Ao seu redor tudo era tela, e nada mais existia, pois permanecia desfocado, e o acinzentar englobava o que não se sabia vivo ou morto. Era só a imagem. A imagem da rosa vermelha e ele.

- "A imagem diz muito sobre mim... Vou observá-la melhor".

E assim o fez. Deitou-lhe os olhos enquanto a mão dela sustentava seu queixo em vê, exato e alvo como o resto do seu rosto. Queria tocá-lo. Nem todas as palavras aqui largadas honram-lhe a impressão que provocava. Era fascínio puro, da qualidade mais excitante e inevitável.

O observador tremeu, taquicárdico, as mãos valsando ao ar em busca de firmeza e exatidão. Sentia-se incomodado mais ainda com o já observado semblante, semblante de quem acorrentava-lhe a atenção. Os dois olhos da dama permaneciam estáticos, mas se movimentavam sim, apesar de toda a estaticidade da figura-quadro. Oscilavam entre órbitas e pupilas de anjo e demônio. Santa, pecadora, imaculada, desprezível. Era encantadora... A -sua- criatura encantadora.

- "Um convite à minha inteligência" - concluía.

Percebia, a cada indagação, um sorriso de provocação dos lábios mais que provocantes da mulher. Era-lhe sua sina, tão doce ou amarga quanto mais dicotomias pudesse ela lhe propor. Sua vida era pêndulo, simplesmente, pois ela assim o queria.

- "E o que queres tu de mim?"

Nada. Quer tudo, ao seu modo, ao seu passo, à sua batida. Na sua sonata descompassada, nem mesmo sabe o que quer, simplesmente se deixa lançar no fluxo do tempo. Perdida. O observador remeteu os pensamentos à sabedoria de Grécia, e pensou que ela era capaz de desprender-se da teia de Horas, Musas e Moiras. Era mais que todas as suas abstrações. Ela era abstração pura. Ela era mais poderosa e divina do que se imaginava, e se se visse de outra forma, estaria cometendo uma injustiça terrível.

- "Você é uma abstração nada produtiva" - desafiava, o homem, a rosa.

Veio-lhe o primeiro impulso. A inércia da figura o incomodava brutalmente: se ele agia ao seu favor, parecia-lhe zombeteira, a rir e escarnecer de suas intenções, fazendo-lhe de pateta. Se ele erguia a voz a ela, já valsava macia e amável, numa outra disposição na tela, como rosa que era. E, logo, seu vermelho-fogo caía-lhe como um vermelho de mais pura afeição e candura.

Mas ele era sério demais para tantas firulas. Ergueu as mãos, pensativo, o desejo de tocar-lhe o pescoço candente e macio, tão próximo que podia até imaginar qual seria o aroma da tez daquela criatura. Queria cravar-lhe os caninos, e rasgar e sentir a carne com toda a bestialidade que corrói as veias de um homem apaixonado.

E assim o fez, aproximando os dedos como agulhas daquela criatura infeliz. Mas ele era mais forte - nem o homem nem a sua Galatéia de tintas, mas o sentimento. O sentimento. As mãos nunca alcançaram o alvo. Parou, estático, num gesto não ensaiado.

- "Fascinante", concluiu, o coração rasgando-lhe o peito em mil batidas.

Os dedos cerrados relaxavam como se a força tivesse se dissolvido, e tocou-lhe as maçãs tenras do rosto, em um gesto fraternal e amoroso, e também sexual. Inspirava-lhe todas as paixões, serenidades, sabedorias e encantos que poderia pensar existirem. Muito mal fez o homem àquela rosa, e mesmo assim, ela e ele, ali, persistiam.

O toque, o elo, o contato. A paixão. Não há beleza que não doa...
Mas há dor que o valha.

Tocou sua rosa amada, a rosa avermelhada, rubra como a Dama de Vermelho oposta à Virgem. Era sua paixão. Tocou-a de novo e de novo, e o tempo passou para os dois, imagem e homem.

Um baque. O morto.

Passou e assim viu-se morto. Morto sim, mas eternizado estaria, ele, seu carinho e amor; no toque que se dava e se perpetuava naquele átimo repleto de tempo.

Seus versos ecoam até hoje acima de terras e mares, e ele vive neles e com eles, na paixão infinda pela rosa avermelhada... Porque sua história merecerá sempre ser recontada, porquanto seu amor por ela perdurar.

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