quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017


O semblante é sempre o primeiro dos mistérios, um afago de alma para o curioso. Atiça, perscruta, incomoda; estimula ou destrói. Tantas possibilidades por detrás de um olhar ou dois instantes trocados, tudo a título de eternidade... Eternidade essa a ser monolítica apenas em mente.

(O tempo é sempre tão indiferente às pequenezas circulares, tão sisifistas...)

De forma pequena ou grande, objetivamente, pouco importa: a instância de um fascínio sempre se basta por si mesma. Nada significa se, dois dias, alguns outonos ou tais quarenta mil ocasos depois, o ser que encara o semblante passa a se enxergar como o imbecil que é. Maravilhas somente o são. Fim.

Quem enxergaria a Beleza e simplesmente não se fascinaria por ela, sem preocupar-se com as suas vindouras revelações?

E assim segue, despreocupado, o observador... O semblante que vê é escape de alma, regozijo de um corpo miúdo demais para contemplar universo particular tão infinito... Nos mais valorosos traços humanos contempláveis, vê o apaixonado também traços divinos. Mas seu Deus é como o pó ao vento, e não passa de miragem.

O semblante é um paradoxo ambulante, pois se fascina, também mastiga; se edifica, consegue, outrossim, constranger, esmagar e fazer evanescer.

Nas agruras de um tempo vivido, um semblante acaba sendo nada mais do que um semblante... Por essa lógica, redunda num desvario de uma mente perturbada: faz do observador um migrante que vai da sanidade ao fracasso retumbante dos "apoteóticos".

Na lógica dos apaixonados, porém, o semblante sempre será a mais divina e perfeita criação do Cosmos. Ingrato e frio que seja, nessa indistinção uniforme e tão particular, reúne em si todas as arestas perfeitas, notas harmônicas ou outros signos capazes de trazer o Céu à Terra... A última porteira da sanidade antes do abraço resfolegante à completude.

Diferentemente de nós, a Beleza é uma instância que há de perdurar para todo o sempre... Da Beleza nasce o Amor que, como fruto da eternidade, não pertence a nós mortais como bem de posse, e jamais nos pertencerá de tal maneira. Questionar suas motivações é incorrer em absurdo. Pena é quando, por vezes, aceitar puramente seus desígnios traz em si a condenação a um orgasmo infindo de Morte. O Amor, malogradamente, também é capaz de matar em tristeza.

domingo, 9 de março de 2014

A loucura



Hope there's someone
Who'll take care of me
When I die, will I go
Hope there's someone
Who'll set my heart free
Nice to hold when I'm tired
There's a ghost on the horizon
When I go to bed
How can I fall asleep at night
How will I rest my head
Oh I'm scared of the middle place
Between light and nowhere
I don't want to be the one
Left in there, left in there
There's a man on the horizon
Wish that I'd go to bed
If I fall to his feet tonight
Will allow rest my head
So here's hoping I will not drown
Or paralyze in light
And godsend I don't want to go
To the seal's watershed
Hope there's someone
Who'll take care of me
When I die, Will I go
Hope there's someone
Who'll set my heart free
Nice to hold when I'm tired

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Diálogo sob a luz das estrelas



Tempo não mais havia, porquanto os sinos daquela noite haviam dado seu último badalo. Na mente de um jovem inventivo, cada ressoar, fragmento de sonoridade, era um pedaço de uma sonata há muito esquecida. Talvez, se juntasse todos os pedaços, veria seu Deus?

Em suas memórias conturbadas, era como se homem não o fosse, mas um colibri que veio a voar sobre a vida e cantar-lhe as glórias e tragédias vividas. Era como se sentia o Menestrel, artista de mil e uma ações, percepções e sentimentos.

Largou a lira ao lado, o cheiro das camélias avançando às narinas. Elas dançavam ao redor dos dois, ao menor sinal das primeiras lufadas gélidas de ar da noite. Seu fragor intenso o deixou tonto e estremecido. No centro, duas figuras curvavam-se sobre uma mesa de carvalho. Os notívagos jogavam xadrez.

Hierofante: Sua vez.

O Menestrel encarou o adversário. Os dedos dele tocados pela idade, a fronte sisuda e compenetrada, impassiva como uma muralha. Assim era seu rival; surgia-lhe sábio como o cume das mais altas montanhas. Sua voz era como catarata de cristal, os dois olhos prontos, parecendo entrave para todas as sabedorias do mundo.

O Menestrel: Quisera eu poder premeditar todas as tuas jogadas, Hierofante... Assim como as jogadas de todas as outras pessoas deste mundo.

Hierofante: Se assim o fosse, o sentido posto desta partida de xadrez não existiria.

O Menestrel: Como todas as outras coisas... - tossiu, um riso doce brotando-lhe no canto da boca.

Hierofante: Que coisas? A que tu se referes?

O Menestrel: Ao mundo que nos cerca... Permites que demonstre?

Hierofante: Claro.

O menestrel tirou a lira do repouso. Sua mão tocou a haste fria do instrumento, a excitação subindo-lhe como eletricidade. Sentia a virulência da música tomar-lhe como se a lira fosse sua própria prostituta. E as notas, para ele, eram como pedaços vivos de algo longevo, uma candura que não lhe caia em palavras. Com o pouso do mais arrebatado silêncio, irrompeu, o menestrel, a noite, com uma história antiga de mais de mil gerações.

Suas notas e lágrimas coravam o ar e o espaço se contorcia ao redor dos dois. O sábio e a criança. O anjo e o menino. O guardião e seu pupilo. Mas ali, só havia um, como um Deus dividido em duas consciências. O Hierofante era a intuição, e o Menestrel, seus sentimentos.

Começou a balada de um trôpego homem, impetuoso e raivoso que, como o Zeus das eras passadas, era poderoso em defender o que cria como o "certo". As notas eram agulhas cravando a carne do Menestrel, e as lembranças o causavam dor... O Hierofante permanecia atônito, apenas a observar a cena vulgarmente narrada.

Tocou sua lira, a prostituta querida, e viu mais mil sóis de amor e derrota. Suas histórias eram rodopios amargurados, em dias passados e um fator inconteste. O Menestrel era revoltado com a passagem das coisas, com sua natureza intempestiva, com os dias idos que não voltariam mais. Detestava as oportunidades perdidas e jogadas ao relento. Julgava a si mesmo incapaz de fincar estacas e honrar todas as juras que fizera... Queria um porquê e não o conseguia. O que mais lhe parecia confortável é imaginar que aquilo era sua natureza ou sina.

Hierofante: Pare. 

As lágrimas cessaram, e os olhos até então cerrados se abriram. Eram lindos como a mais antiga noite, de tempos imovediços e que nunca mais se repetiriam. O Menestrel estava banhado em Lua, as emoções eram tão belas e provocantes que ele parecia a criatura mais perfeita do cosmos. Aos olhos do velho Hierofante, era uma criança perdida em seus próprios revezes.

O Menestrel: Olha para os meus olhos... Qual o propósito dos meus sentimentos? Eu não estou certo? Não é injusta essa vida? Quisera eu poder refazê-la e aproveitar o máximo dos momentos idos... Pois uma vez disseram a este cantor de coisas vãs que o amor não finca estacas: ele vem, chega e vai embora...

Hierofante: E o que inferes disso, Menestrel?

O Menestrel: Que eu estou condenado à minha própria natureza sensível! Que posso eu fazer se amo todas as coisas?

Hierofante: O que chamas tu de amor, menino?

O Menestrel: O que sinto por todos aqueles que me cativam. Mas sinto que esse amor passa, ao simples relance de sóis que ainda virão e de sóis que há muito se puseram... É como o orvalho... Tão fugidio!

Hierofante: Não compreendes a natureza dos teus próprios sentimentos?

O Menestrel: Se os compreendesse, por absoluto, sofreria?

Hierofante: Talvez... Se estes te fossem indignos?

O Menestrel: Injúria... O amor é puro, certamente. Se nasci desta forma devo amar a todos aqueles que puder amar... Mesmo que eu esteja sempre pronto para ir embora no ocaso seguinte.

Hierofante: No fundo tu não compreendes teu próprio ser, e julgas que és imprevisível apenas para te autopreservar.

O Menestrel: Preservar-me de que, Hierofante? Que dizes tu disso, tu que achas que sabe de todas as coisas terrenas tanto quanto das divinas?

Hierofante: Pouco me aprazem as tuas zombarias e pequenices... Há muito estão superadas. Eu sou tu, de certa forma... Será que tu me conheces?

Calou-se o menestrel... Seus olhos tristes e alvos como a Lua necessitavam de afago. Até a mais sisuda das mulheres cairia de encantos se visse a alma daquele homem por inteiro. Na arte das palavras, era quase como se tivesse nascido com todas as habilidades possíveis, tecendo alvoradas com a linguagem. Era capaz de evocar todo o encanto do mundo, e seus olhos, porquanto o fossem como o eram, quedavam casando toda a singularidade da natureza. Era realmente um filho de Afrodite, representando o alvor puro da criação.

Fez seu movimento, torre contra rainha, avançando em direção ao jogo do inimigo.

Hierofante: Contemplas estas palavras... Dizem os homens que, quando o discípulo está pronto, o mestre aparece. Não sei se estás tu pronto, mas se me inquire o conselho, haverá de certo de tê-lo.

O velho hierofante ergueu-se da mesa, altivo, uma enorme cruz na mão direita e uma portentosa espada deitada na esquerda. Ali travou-se a segunda batalha entre os dois, através do verbo.

Hierofante: No casamento de todas as coisas divinas é que surgem as mundanas. Na tua pequeneza, se escondem todos os segredos deste universo. Pois tu és magnífico em teu ser, mas falta-te tato para saber que teus sentimentos, embora poderosos, são apenas uma faceta tua.

O Menestrel: E qual a outra?

Hierofante: Existe Afrodite sem Hermes?

O Menestrel: O que queres dizer?

Hierofante: Que tu não sabes lidar com os próprios sentimentos, pois se esqueces que os sentimentos sem razão não têm propósito.

O Menestrel: Como assim? Queres me dizer que a razão é mais importante que os sentimentos?

Hierofante: Quero dizer-te que nenhum é mais importante que o outro, mas que os dois se completam. Vejas só tu, altivo por natureza, o homem que conquistaria qualquer das mulheres deste mundo. Qual teu propósito com o amor?

O Menestrel: Costumava pensar que sentir-me bem... 

Hierofante: Costumava?

Menestrel: Sim... Não me sinto.

Hierofante: Por quê?

O Menestrel: Porque sofro, e sofro bastante. Caio em mil e uma epifanias, que mais me são como torturas, e chego a conclusões terríveis sobre mim e o mundo. Isto posto, eu as naturalizo, mas não adianta... Um dia o sofrimento há de voltar.

Hierofante: Então não são epifanias conclusivas, mas percepções parciais... Ninguém vê todos os lados do prisma de uma só vez. Epifanias absolutas não criam sofrimento. Tu temes o sofrimento, Menestrel?

O Menestrel: Temo. E sofro porque as coisas boas passam e têm sua hora.

Hierofante: E as que virão? E as que já te surgem? Serás que consegues enxergá-las?

O Menestrel: Minha natureza as dificulta... Por ora me sinto afetuoso, lascivo e apaixonado, por outras me afasto e percebo como pouco sei de mim mesmo... Qual a resposta para meu dilema?

Hierofante: Não sei... Só tu podes responder essa pergunta.

O Menestrel: Qual é então o propósito dessa conversa? Se tu não sabes me dar respostas, apenas fazer-me perguntas...

Hierofante: Estás descobrindo o propósito neste exato instante.

O Menestrel: Estou?

Hierofante: Estás.

O menestrel arqueou-se para trás. Não havia percebido que seu jogo de xadrez estava acabado com o erguer-se do Hierofante. Seu Rei, como seu mundo, estava perdido num curioso xeque-mate.

Caminhou assim para trás, a passos largos, afastando-se da mesa e aproximando-se do círculo de camélias que os envolvia. Pensou em tocar a lira, mas desistiu.

O Menestrel: Aconselha-me... Acho que preciso dos teus conselhos.

Hierofante: De que adiantam conselhos se tu não pretendes tornar-se outro? É como gotas de água contra um incêndio, quando tu próprio provocas o incêndio.

O Menestrel: Não posso!

Hierofante: Porque és fraco. Em tuas convicções e presunções reside a tua maior fraqueza. És tão pouco ciente das próprias forças que se prendes às fatalidades e se deixas arrastar por um destino incontrolável. És como um pequeno peixe contra uma correnteza faminta... Teus maiores grilhões são as ideias que tem de si.

O Menestrel: Queres que eu me apegue ao passado? Assim sofreria ainda mais... Com bilhões de possibilidades e primaveras por conhecer, porque haveria eu de...

Hierofante: Mais uma vez se preservas deturpando o que eu digo. Sabes qual é o maior indicativo de que há algo errado?

O Menestrel: Qual?

Hierofante: O desejo por mudança. E se não mudas, é pois naturalizou hábitos e perspectivas as quais te surgem como grilhões. Jamais mudarás tu, Menestrel, porquanto tu não te empenhares.

O Hierofante andou, seus passos ruidosos faziam o céu tremular, e a cada movimento ele parecia maior e mais altivo, como se fosse uma divindade se materializando aos poucos, trazendo ao ambiente os mistérios e as respostas

Hierofante: O amanhã é sempre um dia promissor, não? Por que não tentas tocar uma música diferente hoje, e não esperas por amanhã? 

O Menestrel: Será? Qual o tema?

Hierofante: Um tema inteiramente novo... Um novo olhar sobre ti, tuas paixões e todas as outras coisas. Tenta.

Os dedos corriam as cordas da lira, e começava a nova e última música do Menestrel. Esta parecia diferente, posto que as notas pareciam estar soando como se tocadas em outra escala. Nela, viu o quão frágil era, e o quão enganosos e enganados poderiam estar seus olhos sobre todas as coisas, sobre si e sobre aquilo que reconhecia como "amor".

Viu-se diferente, como um observador estático de si mesmo. Por mais que se achasse incapaz de fincar bases pela vida, tudo não lhe passava de questão de perspectiva... E se ousasse? No fundo queria se entregar aos sentimentos mais profundos e famintos, mas tinha medo deles... Já haviam lhe custado muito e causado muita dor. Seu medo, pintado na forma de receios, era a pior forma de aprender com eles.

Sua principal descoberta foi perceber que, além dos próprios sentimentos, não havia nenhuma "natureza" ou "corrente" que durasse a ele pela vinda inteira... Era tão mutável e nem imaginava! Seu erro maior não era desprezar as coisas passadas... Era jamais ter conseguido viver as presentes sem esquecer o passado. Um paradoxo ambulante.

Só havia um problema. A sua pergunta inicial persistia... Qual o propósito dos seus sentimentos? Um enigma.






sábado, 18 de janeiro de 2014

Memórias


Meneou as mãos pelo ar, exaltando o cheiro de naftalina na velha sala. Aos moldes do passado, o Escultor quisera repetir os maus feitos de alguns ocasos que já não lhe voltavam mais.
E lá ia o imbecil. Largou a picareta sob a tábua mofada da mesa, cuja madeira jazia tão podre quanto a sua alma descompassada e cheia de maldade. Relampejos inconstantes e a ira pendular; o Pigmaleão fitava a perdição à frente. Um baque. Dois. Começava a dar-lhe vida, com vida e na mente, vida às suas formas e disposições.
Rodopiava ao seu lado uma forma magra de ave, despontando no ar como um buraco negro. Seus olhos eram opalinos de tal forma que não podiam ser encarados. Terminou o rasante com o aspecto de um corvo de ébano.
Corvo: Quiseras tu uma vida mais viril? Vives de mármores e cores tortas! De uma desforra sempre tão vil és só vivalma em madrugadas mortas...
Escultor: Cala-te, teu mestre não te pergunta nada... Se és tão zombeteiro, poderias ao menos respeitar aquele que te provê subsistência!?
Corvo: Há quanto não sentes os afagos da carne, Escultor? Larga esta tua sina!
Escultor: Nada! As formas vivas não estão à minha altura...
Corvo: À tua? Tem certeza? Esquizofrênico!
Escultor: Praguejador! Gralha do diabo!
Virou-se, a pancada brusca sobre a mesa, a praga fria zumbindo-lhe os ouvidos...  Cortou a cabeça do dedo, e o sangue vazou como água em fissão de pedra... Uma única coisa viva no reino de escuridão, o quão doloroso aquilo lhe surgia? O rubro do sangue resplandecente era portador do tom mais que fascinante aos olhos insones do Escultor.
Escultor: Vês o que fizeste? A tua simples presença põe à terra todo o meu trabalho! Anátema!

Corvo: Não chames essas tuas frustrações de ofícios!
Escultor: Darei vida a um gavião de pura chama, para que te incandesça vivo! Ignaro!
Ria ruidoso o Escultor, enquanto a ave se recolhia nas sombras da lúgubre oficina. Fazia questão que suas gargalhadas ecoassem, como o anunciar de uma supremacia falsária, embuste frágil como orvalho. Era seu mundo de trunfos, seu burgo de sombras antigas e envilecido por seus segredos insidiosos.
Ergueu-se ao seu lado, feita de costela alguma, mulher alva como a lua, e pálida como a bruma. Era de feições e esplendor inenarráveis, os olhos querendo pintar alguma malícia que não existia... E não existia nada porque era este um ente em mármore.
A Galateia: Eis que chega meu senhor, ansioso por fazer-me sua! Escolhestes como descarregar o teu ardor? Põe as mãos nesta carne nua!
O Escultor encarava a obra, e gargalhava satisfeito. Trotava daquela garganta riso funesto, corda despontada como em desafino, e o som punha abaixo até mesmo a harmonia do silêncio. Incomodado com o próprio escárnio cacofônico, estalou os dedos como quem está a olvidar um detalhe importante.
Escultor: Eu quero música!
Um cravo despontava em tonalidade menor, povoando com notas o sinistro reino escuro. O Escultor cospe no rosto da mulher, e aperta-lhe o pescoço de mármore, a ira partindo da ponta dos dedos num crescendo de tesão. O mero toque, com casualidade, causava-lhe eletricidade de um orgasmo. O calor despontava-lhe das pontas dos dedos, irradiando sua alma e fazendo-o enxergar estrelas que não existiam. Era prazer puro.As veias dilatavam em paixão, os olhos quedavam cerrados sobre a face sem vida... Sem vida... Um alguém que não podia, simplesmente, morrer... Quem era?
Escultor: Cala-te, rameira! Não abra essa tua boca imunda sem que eu te mande, mulher!
A criatura de mármore deslizou para trás. Se pudesse expressar-se, será que verteria algumas lágrimas em mármore?
Corvo: Doente! Como podes construir um mundo se não consegues reparar nem teu doído coração?

Escultor: Pergunto-te eu, corvo! Para que choras meu coração? Não te basta o teu grilhão?
Corvo: Que grilhão, doidivano?
Escultor: És uma ave estúpida e amorfa, escura como a noite, e povoas o coração dos homens de espanto! És maldita, agoureira e malfazeja! Quem errou tanto a mão na hora de te esculpir? – dava a cartada.    
Corvo: Sou consciência, Escultor! Tua consciência! Caio-te negro como teu coração pérfido, cambaleante nas agonias de um desprezo a não se esquecer! Olha bem tu, homem, para o rosto cuspido e esculpido desta mulher! Fita-o! Sente-o! Trague-o! Ela é tu, tu és ela! Tua criatura, assim como o amor é criatura tua também! Preservas este semblante e não te apequenas... Respeita!
Escultor: Respeitar quem não me respeita!? Cala apenas!
O corvo voou da pedra luminescente onde jazia, as asas abrindo-se e perdendo forma no âmbito escuro. Miscigenou-se às sombras. Se luz entrasse ali, nos perdidos recônditos de um homem fragmentado, o que encontraria? Quais estilhaços compunham o escultor?
Corvo: O mal não existe, homem! Olhas o rosto da mulher que tu amaste! Percebes como tu és através dela!
Respondeu com um gesto de ódio. Urro. O corvo o desconheceu, as garras da ave pousando sob o topo de uma tela.
[...A ser continuado...]

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O Observador e a Tela



Algumas tantas malfadadas linhas haviam sido trocadas várias vezes entre os dois; lidas e ditas, ouvidas e sentidas. O tempo era um agente estranho naqueles contos constantemente inacabados.

E, se posto o sentido daquele contato, ele mesmo se perdia, fugaz como o orvalho, num átimo ortodoxo de tempo. E assim os olhos da flor que era botão o fitavam.

Ela tinha a expressão encantadora das mais avassaladoras das dicotomias. O seu emblema era significante e  significador... Era pérfido. E perfidamente era-lhe prazeroso ser dicotômica, por natureza, e instaurar a confusão em um coração incauto.

A expressão, à sua maneira, o confirmava: tinha o olhar mais dúbio que ele, homem, já havia concebido em suas mais de cinco existências lembradas.

- "O que se passa em sua cabeça?", resmungava enquanto não desgrudava os olhos dela.

Quedou atônito a contemplá-la. Ao seu redor tudo era tela, e nada mais existia, pois permanecia desfocado, e o acinzentar englobava o que não se sabia vivo ou morto. Era só a imagem. A imagem da rosa vermelha e ele.

- "A imagem diz muito sobre mim... Vou observá-la melhor".

E assim o fez. Deitou-lhe os olhos enquanto a mão dela sustentava seu queixo em vê, exato e alvo como o resto do seu rosto. Queria tocá-lo. Nem todas as palavras aqui largadas honram-lhe a impressão que provocava. Era fascínio puro, da qualidade mais excitante e inevitável.

O observador tremeu, taquicárdico, as mãos valsando ao ar em busca de firmeza e exatidão. Sentia-se incomodado mais ainda com o já observado semblante, semblante de quem acorrentava-lhe a atenção. Os dois olhos da dama permaneciam estáticos, mas se movimentavam sim, apesar de toda a estaticidade da figura-quadro. Oscilavam entre órbitas e pupilas de anjo e demônio. Santa, pecadora, imaculada, desprezível. Era encantadora... A -sua- criatura encantadora.

- "Um convite à minha inteligência" - concluía.

Percebia, a cada indagação, um sorriso de provocação dos lábios mais que provocantes da mulher. Era-lhe sua sina, tão doce ou amarga quanto mais dicotomias pudesse ela lhe propor. Sua vida era pêndulo, simplesmente, pois ela assim o queria.

- "E o que queres tu de mim?"

Nada. Quer tudo, ao seu modo, ao seu passo, à sua batida. Na sua sonata descompassada, nem mesmo sabe o que quer, simplesmente se deixa lançar no fluxo do tempo. Perdida. O observador remeteu os pensamentos à sabedoria de Grécia, e pensou que ela era capaz de desprender-se da teia de Horas, Musas e Moiras. Era mais que todas as suas abstrações. Ela era abstração pura. Ela era mais poderosa e divina do que se imaginava, e se se visse de outra forma, estaria cometendo uma injustiça terrível.

- "Você é uma abstração nada produtiva" - desafiava, o homem, a rosa.

Veio-lhe o primeiro impulso. A inércia da figura o incomodava brutalmente: se ele agia ao seu favor, parecia-lhe zombeteira, a rir e escarnecer de suas intenções, fazendo-lhe de pateta. Se ele erguia a voz a ela, já valsava macia e amável, numa outra disposição na tela, como rosa que era. E, logo, seu vermelho-fogo caía-lhe como um vermelho de mais pura afeição e candura.

Mas ele era sério demais para tantas firulas. Ergueu as mãos, pensativo, o desejo de tocar-lhe o pescoço candente e macio, tão próximo que podia até imaginar qual seria o aroma da tez daquela criatura. Queria cravar-lhe os caninos, e rasgar e sentir a carne com toda a bestialidade que corrói as veias de um homem apaixonado.

E assim o fez, aproximando os dedos como agulhas daquela criatura infeliz. Mas ele era mais forte - nem o homem nem a sua Galatéia de tintas, mas o sentimento. O sentimento. As mãos nunca alcançaram o alvo. Parou, estático, num gesto não ensaiado.

- "Fascinante", concluiu, o coração rasgando-lhe o peito em mil batidas.

Os dedos cerrados relaxavam como se a força tivesse se dissolvido, e tocou-lhe as maçãs tenras do rosto, em um gesto fraternal e amoroso, e também sexual. Inspirava-lhe todas as paixões, serenidades, sabedorias e encantos que poderia pensar existirem. Muito mal fez o homem àquela rosa, e mesmo assim, ela e ele, ali, persistiam.

O toque, o elo, o contato. A paixão. Não há beleza que não doa...
Mas há dor que o valha.

Tocou sua rosa amada, a rosa avermelhada, rubra como a Dama de Vermelho oposta à Virgem. Era sua paixão. Tocou-a de novo e de novo, e o tempo passou para os dois, imagem e homem.

Um baque. O morto.

Passou e assim viu-se morto. Morto sim, mas eternizado estaria, ele, seu carinho e amor; no toque que se dava e se perpetuava naquele átimo repleto de tempo.

Seus versos ecoam até hoje acima de terras e mares, e ele vive neles e com eles, na paixão infinda pela rosa avermelhada... Porque sua história merecerá sempre ser recontada, porquanto seu amor por ela perdurar.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Relojoeiro

Redoma de mundo. Nem tão pouco, nem tão mundo. Ao alcance de dois cliques e, logo assim, seus ponteiros mínimos e singulares corriam numa dança com apenas um expectador. E ele presumia pouco de si... Se os ponteiros pudessem presumir em uníssono com o relojoeiro, então a presunção dos três, hora, minuto e relojoeiro, seria a mesma.

Tal presunção era mistério... Focava-se no que via. Sua profissão se pautava no esmero e na atenção extrema, afinal, lidava com os minúsculos componentes de um relógio de pulso. A velha mão calejada, de tantas quantas idas e vindas, peças e microparafusos, deitava um pequeno lenço para forrar o relógio.

Regozijava-se à sua sinfonia particular... Tin, din, dom, taque, tin, din, dom, taque. Para ele, Beethovens ou Chopins particulares. Mas era só mais um dia na vida do relojoeiro... E se perguntava se, para aquele homem que vive do tempo, o tempo por si só se permitiria ser mensurado por ele, seu antigo amigo, ou se seria impetuoso e friamente cortante e indiferente como o é com todas as coisas que se põem vivas à luz do sol ou nas trevas de sua escuridão.

O pai, cujo relógio já havia parado de correr há muito, dizia ao filho que os homens não foram feitos para compreender o tempo, pois a natureza do tempo é como a turva natureza dos homens, fruto de sua própria inexorabilidade. Os homens foram feitos para dançarem ao som dos tiques e taques, em sua valsa descompassada de horas e minutos, e que por eras seria assim, até que o homem venceria o tempo e seria eterno como o é: não mais homem, mas fagulha de tudo.

Aquele que o é, por essência, essência de todas as coisas.

Perguntava-se no que aquilo afetaria sua vida, e simplesmente não entendia... O conflito era iminente. Os olhos agora não desgrudavam da marcha dos ponteiros, e percebia neles a batida de sua música; e percebia também que nessa batida havia um rito profundo de lamento e dor... Como todas as coisas que jamais o serão.

Perdeu-se em pensamentos... O que seria melhor, viver no efêmero ou não-existir como o eterno? Sua dúvida era insana e inrazoável de se responder. Permaneceu na sua ignorância intuitiva de silêncio.

Na sua infinda solidão, questionava se medir o tempo seria a coisa mais inteligente a se fazer... Os olhos se marejavam de lágrimas, e logo quedaram sobre as mãos... Tão velhas e sofridas, como sua alma torpe e descompassada, cheia de vazios. As horas pareciam-lhe sem significado... Pois para ele, mal apercebido, o significado de suas horas acabava sendo as próprias horas...

Era como se fosse fim do fim ou fim do começo, e nessa relação chacoalhante, não entendia porque mais se reter ao tempo, pois se descobriu frágil demais... Pois o tempo, agora mais do que nunca, se revelava o critério destruidor de todas as suas estações.

Procurava uma solução, sua saída particular, mas aquela porta sinuosa não havia... E agora, no auge da dor, não se compreendia epifânico, mas desesperado, como se todos os minutos já lhe passados se personificassem nos tiques e taques das dezenas de relógios que o circundavam em seu escritório... Na sua perdição particular, então, parecia asfixiado, pois pela primeira vez entendeu que nenhum relógio pode ser de fato regulado, mas aceito como o é: soberano incontestável de si próprio.

As lágrimas arrazoavam sua triste sina de impotência e falta de propósito... Era o condenado. O relojoeiro. Para sempre reduto de seu fim. Para sempre arauto de um iminente começo. E, até o último tique-taque, assim o relojoeiro quedaria...

...como um medíocre sonhador, que nunca soubera sequer sonhar.